Ele tomou
uma garrafa de vinho deitado no sofá, ouvindo Bethânia. Sentia saudade não
sabia do que, de quem. A noite estava tão quente. Será que lá fora estava
melhor? Não tinha ideia, fazia tanto tempo que não ultrapassava as fronteiras
físicas daquela kitnet suja. Nos pensamentos, não parava lá dentro.
Ele já
tinha várias certezas inúteis, elaborou todas pensando sobre coisas inúteis,
enquanto, no seu isolamento, se esquecia de como se vive funcionalmente. Seu celular
tocou. Ele não se lembrava de que tinha um celular. O toque era um sambinha
animado, que conforme foi tocando, fez seu coração acelerar, desesperado. Ele silenciou
a ligação, nem pensou em atender seu amigo Tiago (ou seria ex-amigo? Não se viam há
tanto tempo!). Ah, antes que eu me esqueça, como ele quase já havia
esquecido: seu nome é Lázaro. O que aquele toque havia feito com Lázaro? Simples,
o fez lembrar de que ele já sambou, no mundo lá fora, com gente lá fora. Lázaro
já sambou. Lázaro foi feliz.
Ele foi até
a sacada, olhou as pessoas andando lá embaixo, os carros. Risadas, conversas,
buzinas. Ficou um pouco tonto, mas foi seduzido por aquele fuzuê. Colocou uma
calça jeans, dez reais no bolso, seu all star vermelho e disse pra si mesmo que
iria só comprar um cigarro no bar da esquina. Dentro do elevador, olhava os
números mudarem com uma atenção quase mórbida. Conforme os números decresciam,
a ansiedade aumentava. 5. E se encontrasse alguém conhecido? 4. Fazia tanto
tempo que não tocava uma mulher. Teriam muitas mulheres no bar? 3. Preocupou-se
por estar mal vestido, todos o veriam como um trapo. 2. Por isso é difícil
sair, olha que merda. Você sai pra comprar um cigarro e no mínimo dez pessoas
vão te fuzilar com os olhos, te reprovar, te rejeitar, na cabeça delas, como se
você fosse uma figura indigna de empatia. 1. Não devia ter saído de casa,
pensou. Foi a pior decisão possível. Térreo.
“Boa noite,
Lázaro! Resolveu sair da toca?”, gritou
o porteiro, de dentro da guarita. “Boa noite”, respondeu baixo, sem nem olhar. Deu
passos afobados até o bar, mas seu rosto refletia alguém que parecia não ter
vida. Parecia. Lázaro tinha uma vida, a qual começou a questionar no momento em
que ouviu seu celular tocar. Entrou no bar. Chegou ao caixa e ficou parado,
olhando pro mostruário de cigarros. “Posso ajudar?”. Era uma mulher bonita, da
voz gentil, devia ter uns trinta anos. “Um Marlboro, por favor”. Lázaro parecia
ter acabado de acordar, apesar dos olhos atentos. Tinha um tom melancólico e
alheio, qualquer um perceberia.
- Eu não
tenho fogo, esqueci o isqueiro em casa. Tem aqui? – perguntou pra mulher do
caixa.
- Claro.
Aqui!
- Vou lá
fora acender.
- Pode
fumar aqui. Vai beber alguma coisa?
- Não, vim
só dar uma olhada. – soltou sem ver, talvez sem imaginar como isso soaria pra
uma outra pessoa.
- Dar uma
olhada no quê? – perguntou rindo a mulher.
- Ah,
nada... O tempo, pessoas... – acendeu o cigarro.
- Ah, sim.
Como é seu nome?
- Lázaro.
- Eu sou a
Carmen, Lázaro. Se quiser uma cervejinha ou outra coisa, é só pedir.
Lázaro só
sorriu. Ficou ouvindo as pessoas, cada mesa tinha uma conversa diferente, e
todo mundo parecia falar ao mesmo tempo. “Onde eles arrumam tanto o que falar?”,
falou baixo. Estava acostumado a conversar sozinho em casa, mas do outro lado
do balcão estava Carmen, que ouviu.
- Como?
- O que?
- Você
falou alguma coisa.
- “Onde
eles arrumam tanto o que falar?”. Tava pensando alto, desculpa.
- Eles?
- As
pessoas. Enfim... – acendeu outro cigarro.
- Todo
mundo tem muito o que contar.
- Mas acaba
não contando. Quando outra pessoa não está ouvindo, você tá só verbalizando,
não tá contando nada. E ninguém ouve. Tá todo mundo falando ao mesmo tempo.
- A
história da gente sempre é mais interessante pra gente. Às vezes, só pra gente.
Eu li num livro, uma vez, que enquanto o outro fala, a gente tá é pensando no
que vai falar. Já reparou nisso?
- Não. Não ando
conversando muito.
- Cansou de
verbalizar pra ninguém ouvir?
- Eu só...
Eu só não vejo sentido. As pessoas fazem tanta coisa. Tanta coisa que, se você
parar pra pensar, não faz sentido. A gente atravessa o dia fazendo coisas, pra
chegar em casa e nada fazer sentido. Nada preenche, vai ficando tudo vago,
tudo... Tudo em branco.
- Mas por
que as coisas precisam de um sentido?
- Se elas
não fazem sentido, elas geram angústia. E fazer sentido ou não, só é uma
questão pra quem está infeliz. Quem está feliz, não se preocupa com o sentido
da coisa, a coisa basta.
- E o que
faz alguém ser feliz?
- Já me perguntei
isso todos os dias, por muito tempo. Agora eu só aceito: algumas pessoas são felizes, outras não.
- Você é
feliz, Lázaro?
Lázaro
sabia que não, estava cansado de saber que não. Mas quando Carmen perguntou,
doeu. Doeu por que, quando outra pessoa pergunta, a resposta importa. Quando você
responde para OUTRA pessoa que é infeliz, você está CONTANDO que é infeliz, não
apenas tomando consciência disso. Respirou
fundo, com os olhos fixamente direcionados para a o cigarro em suas mãos.
- Acho que
ninguém que sai de casa pra fumar um cigarro e ouvir conversas alheias é feliz.
- Você não tá
ouvindo conversas alheias mais. Você tá
falando comigo. – Carmen colocou a mão no ombro de Lázaro, que pela primeira
vez olhou para ela de verdade. Com um sorriso de mulher que sabe da vida, ela
continuou falando. – Olha, rapaz, a gente realmente vive num mundo que parece
estar correndo enlouquecidamente pra lugar nenhum, mas a gente não precisa
correr, a gente não precisa chegar em lugar nenhum. A gente precisa de paz, de dar
voltas, se perturbar, e então dar mais voltas pra ficar em paz de novo. A
felicidade é superestimada, só por isso doi não tê-la. A propaganda é falsa,
acredite. Não é isso tudo ser feliz. Mas ter paz é tudo. E perder a paz também
é tudo. Você vai usar o sentido das coisas pra fazer o que? Você tem que SE
usar. O sentido das coisas é delas... Seu, é só você. O que cabe a você, é você.
Pode ter um vácuo de sentido em tudo que a gente faz, mas se a gente faz alguma
coisa, a gente se livra do vácuo de nós mesmos.
A cabeça de
Lázaro estava a ponto de explodir, pensava em tanta coisa, sentia tanta coisa.
O borbulho de pensamentos foi exterminado por um abraço. Que abraço! Nos braços
de Carmen, Lázaro chorou. Não se precisa de sentido, quando se tem um abraço.
Lázaro foi liberto: Carmen exorcizou sua alma de um demônio que, de alguma
forma, ela parecia conhecer bem. Que demônio é esse, ninguém sabe ao certo, e
agora, ninguém quer saber. Pelo menos, não Lázaro.
Chegou um
cliente ao caixa e Carmen foi atendê-lo. Lázaro colocou o cigarro no bolso e
caminhou até a saída do bar. De lá, olhou para Carmen e os dois trocaram um
sorriso, era um agradecimento mútuo. “Obrigado por ter me ouvido”, era o que a
troca de olhares dizia.
Deixando o bar e as pessoas que verbalizavam
simultaneamente sem parar para trás, Lázaro caminhou de volta para casa
carregando a sensação do abraço de Carmen. Nessa noite, criou outra certeza,
talvez não tão inútil: não é uma injustiça a felicidade alheia, nem a sua
infelicidade; não há motivo para se sentir vazio, quando não existe a
necessidade de se preencher de sentidos. De agora em diante, Lázaro sabe que só
precisa perder a paz mais vezes.