Hoje quando você chegou do bar, veio falar
comigo outra vez. Pra minha surpresa, não foi pra descarregar o nojo, a revolta
e a inconformidade que tem com a minha sexualidade. Você veio me dizer sobre a
falta que eu faço. Com a sua voz alterada, pelo álcool e pela dor, você
relembrou das nossas conversas na piscina da chácara, aquelas que aconteciam
entre uma pirueta e outra que você me ajudava a executar. Conversas sobre como
eu deveria crescer com paz de espírito, não dando lugar à ansiedade em excesso
e à melancolia, que você já notava que eu havia “herdado” da sua família.
Sempre foi muito claro que além da testa
grande, as orelhas e o jeito de jogar bola, eu também puxei de você essa
tendência cruel ao isolamento e à introspecção. Nós íamos pra porta de casa
quando você chegava do serviço e jogávamos futebol, e numa dessas passaram dois
marmanjos de bicicleta e um deles gritou: “É bom ter filho homem, né?”. Eu me
lembro de entrar pra casa com a bola debaixo do braço, engolindo o choro e
morrendo de vergonha, me sentindo uma aberração aos sete anos, passando na
frente do meu pai a humilhação que eu passava na escola. Quando eu relembrei o
fato em uma de nossas últimas brigas, aos berros, dizendo “você acha que foi
fácil crescer me sentindo esquisita? Você acha que eu escolhi?” e você disse
não se lembrar do episódio, eu fiquei surpresa. Mas acho que com a pouca
maturidade que tenho, entendo que muitas cicatrizes não são compartilhadas. Mas
nós compartilhamos da ausência um do outro.
Sou grata por ter me apresentado bossa nova,
clássicos do rock internacional e bons livros. Espero que um dia os diálogos
voltem, e a troca de indicações de livros, filmes e bandas também. Sei que as
ofensas disparadas um contra o outro, não voltam, mas que cicatrize e eu não
seja mais uma daquelas adultas que mal trocam telefonemas com o pai. A vida
talvez se concretize nos reencontros, não nos momentos de separação. Esse amor
que tenho por você, todo machucado e nostálgico, habita aqui, no cerne do meu
corpo andrógino, que você detesta, sempre habitará.