quinta-feira, 20 de setembro de 2012
terça-feira, 18 de setembro de 2012
Perder a paz
Ele tomou
uma garrafa de vinho deitado no sofá, ouvindo Bethânia. Sentia saudade não
sabia do que, de quem. A noite estava tão quente. Será que lá fora estava
melhor? Não tinha ideia, fazia tanto tempo que não ultrapassava as fronteiras
físicas daquela kitnet suja. Nos pensamentos, não parava lá dentro.
Ele já
tinha várias certezas inúteis, elaborou todas pensando sobre coisas inúteis,
enquanto, no seu isolamento, se esquecia de como se vive funcionalmente. Seu celular
tocou. Ele não se lembrava de que tinha um celular. O toque era um sambinha
animado, que conforme foi tocando, fez seu coração acelerar, desesperado. Ele silenciou
a ligação, nem pensou em atender seu amigo Tiago (ou seria ex-amigo? Não se viam há
tanto tempo!). Ah, antes que eu me esqueça, como ele quase já havia
esquecido: seu nome é Lázaro. O que aquele toque havia feito com Lázaro? Simples,
o fez lembrar de que ele já sambou, no mundo lá fora, com gente lá fora. Lázaro
já sambou. Lázaro foi feliz.
Ele foi até
a sacada, olhou as pessoas andando lá embaixo, os carros. Risadas, conversas,
buzinas. Ficou um pouco tonto, mas foi seduzido por aquele fuzuê. Colocou uma
calça jeans, dez reais no bolso, seu all star vermelho e disse pra si mesmo que
iria só comprar um cigarro no bar da esquina. Dentro do elevador, olhava os
números mudarem com uma atenção quase mórbida. Conforme os números decresciam,
a ansiedade aumentava. 5. E se encontrasse alguém conhecido? 4. Fazia tanto
tempo que não tocava uma mulher. Teriam muitas mulheres no bar? 3. Preocupou-se
por estar mal vestido, todos o veriam como um trapo. 2. Por isso é difícil
sair, olha que merda. Você sai pra comprar um cigarro e no mínimo dez pessoas
vão te fuzilar com os olhos, te reprovar, te rejeitar, na cabeça delas, como se
você fosse uma figura indigna de empatia. 1. Não devia ter saído de casa,
pensou. Foi a pior decisão possível. Térreo.
“Boa noite,
Lázaro! Resolveu sair da toca?”, gritou
o porteiro, de dentro da guarita. “Boa noite”, respondeu baixo, sem nem olhar. Deu
passos afobados até o bar, mas seu rosto refletia alguém que parecia não ter
vida. Parecia. Lázaro tinha uma vida, a qual começou a questionar no momento em
que ouviu seu celular tocar. Entrou no bar. Chegou ao caixa e ficou parado,
olhando pro mostruário de cigarros. “Posso ajudar?”. Era uma mulher bonita, da
voz gentil, devia ter uns trinta anos. “Um Marlboro, por favor”. Lázaro parecia
ter acabado de acordar, apesar dos olhos atentos. Tinha um tom melancólico e
alheio, qualquer um perceberia.
- Eu não
tenho fogo, esqueci o isqueiro em casa. Tem aqui? – perguntou pra mulher do
caixa.
- Claro.
Aqui!
- Vou lá
fora acender.
- Pode
fumar aqui. Vai beber alguma coisa?
- Não, vim
só dar uma olhada. – soltou sem ver, talvez sem imaginar como isso soaria pra
uma outra pessoa.
- Dar uma
olhada no quê? – perguntou rindo a mulher.
- Ah,
nada... O tempo, pessoas... – acendeu o cigarro.
- Ah, sim.
Como é seu nome?
- Lázaro.
- Eu sou a
Carmen, Lázaro. Se quiser uma cervejinha ou outra coisa, é só pedir.
Lázaro só
sorriu. Ficou ouvindo as pessoas, cada mesa tinha uma conversa diferente, e
todo mundo parecia falar ao mesmo tempo. “Onde eles arrumam tanto o que falar?”,
falou baixo. Estava acostumado a conversar sozinho em casa, mas do outro lado
do balcão estava Carmen, que ouviu.
- Como?
- O que?
- Você
falou alguma coisa.
- “Onde
eles arrumam tanto o que falar?”. Tava pensando alto, desculpa.
- Eles?
- As
pessoas. Enfim... – acendeu outro cigarro.
- Todo
mundo tem muito o que contar.
- Mas acaba
não contando. Quando outra pessoa não está ouvindo, você tá só verbalizando,
não tá contando nada. E ninguém ouve. Tá todo mundo falando ao mesmo tempo.
- A
história da gente sempre é mais interessante pra gente. Às vezes, só pra gente.
Eu li num livro, uma vez, que enquanto o outro fala, a gente tá é pensando no
que vai falar. Já reparou nisso?
- Não. Não ando
conversando muito.
- Cansou de
verbalizar pra ninguém ouvir?
- Eu só...
Eu só não vejo sentido. As pessoas fazem tanta coisa. Tanta coisa que, se você
parar pra pensar, não faz sentido. A gente atravessa o dia fazendo coisas, pra
chegar em casa e nada fazer sentido. Nada preenche, vai ficando tudo vago,
tudo... Tudo em branco.
- Mas por
que as coisas precisam de um sentido?
- Se elas
não fazem sentido, elas geram angústia. E fazer sentido ou não, só é uma
questão pra quem está infeliz. Quem está feliz, não se preocupa com o sentido
da coisa, a coisa basta.
- E o que
faz alguém ser feliz?
- Já me perguntei
isso todos os dias, por muito tempo. Agora eu só aceito: algumas pessoas são felizes, outras não.
- Você é
feliz, Lázaro?
Lázaro
sabia que não, estava cansado de saber que não. Mas quando Carmen perguntou,
doeu. Doeu por que, quando outra pessoa pergunta, a resposta importa. Quando você
responde para OUTRA pessoa que é infeliz, você está CONTANDO que é infeliz, não
apenas tomando consciência disso. Respirou
fundo, com os olhos fixamente direcionados para a o cigarro em suas mãos.
- Acho que
ninguém que sai de casa pra fumar um cigarro e ouvir conversas alheias é feliz.
- Você não tá
ouvindo conversas alheias mais. Você tá
falando comigo. – Carmen colocou a mão no ombro de Lázaro, que pela primeira
vez olhou para ela de verdade. Com um sorriso de mulher que sabe da vida, ela
continuou falando. – Olha, rapaz, a gente realmente vive num mundo que parece
estar correndo enlouquecidamente pra lugar nenhum, mas a gente não precisa
correr, a gente não precisa chegar em lugar nenhum. A gente precisa de paz, de dar
voltas, se perturbar, e então dar mais voltas pra ficar em paz de novo. A
felicidade é superestimada, só por isso doi não tê-la. A propaganda é falsa,
acredite. Não é isso tudo ser feliz. Mas ter paz é tudo. E perder a paz também
é tudo. Você vai usar o sentido das coisas pra fazer o que? Você tem que SE
usar. O sentido das coisas é delas... Seu, é só você. O que cabe a você, é você.
Pode ter um vácuo de sentido em tudo que a gente faz, mas se a gente faz alguma
coisa, a gente se livra do vácuo de nós mesmos.
A cabeça de
Lázaro estava a ponto de explodir, pensava em tanta coisa, sentia tanta coisa.
O borbulho de pensamentos foi exterminado por um abraço. Que abraço! Nos braços
de Carmen, Lázaro chorou. Não se precisa de sentido, quando se tem um abraço.
Lázaro foi liberto: Carmen exorcizou sua alma de um demônio que, de alguma
forma, ela parecia conhecer bem. Que demônio é esse, ninguém sabe ao certo, e
agora, ninguém quer saber. Pelo menos, não Lázaro.
Chegou um
cliente ao caixa e Carmen foi atendê-lo. Lázaro colocou o cigarro no bolso e
caminhou até a saída do bar. De lá, olhou para Carmen e os dois trocaram um
sorriso, era um agradecimento mútuo. “Obrigado por ter me ouvido”, era o que a
troca de olhares dizia.
Deixando o bar e as pessoas que verbalizavam simultaneamente sem parar para trás, Lázaro caminhou de volta para casa carregando a sensação do abraço de Carmen. Nessa noite, criou outra certeza, talvez não tão inútil: não é uma injustiça a felicidade alheia, nem a sua infelicidade; não há motivo para se sentir vazio, quando não existe a necessidade de se preencher de sentidos. De agora em diante, Lázaro sabe que só precisa perder a paz mais vezes.
sexta-feira, 7 de setembro de 2012
Faça como o vento
Acordei. Olhei pro teto, fechei os olhos de novo, um vento fresco entrava pela janela e me tocava com carinho. Fui lavar o rosto. Enquanto eu me encarava no espelho do banheiro, desgostando da pessoa que eu via refletida, o celular tocou no quarto.
- Oi, mãe.
- Bom dia, filha, acabou de acordar?
- Aham.
- Já comeu?
- Não, eu acabei de acordar.
- Seu primo sofreu um acidente.
- Que primo?
- O Eder. Dormiu no voltante, voltando de uma festa.
- Onde ele tá internado? Foi grave?
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, que responderam por ela. Meu primo está morto.
- Puta que pariu, mãe. Ele...?
- É. Pra você ver como que é a vida. Na minha última conversa com ele, ele falou de você. "A Amanda é muito gente boa, tia, nunca vi uma menina fácil de conversar igual ela."
De fato, conversei muito com ele nas férias. Bebemos, jogamos truco e falamos até sobre mulheres. Ele, católico, sem nenhum problema em estar sentado num pesque e pague do interior, onde todo mundo o conhece, com a prima sapatão. Eu não sei lidar com mortes. Quem sabe, afinal? Não é um problema que se pode solucionar, nem um fato que outro fato amenize. A morte é um minuto de silêncio eterno. Fui até a janela, precisava do mesmo vento que me tocava quando acordei. O vento estava igual, ainda está... Mas agora eu o sinto diferente. Senti raiva de estar um clima agradável, como se fosse um desrespeito ao meu luto. Então, me lembrei do meu poema preferido, que Ferreira Gullar fez para Clarice Lispector, quando ela morreu.
"Enquanto te enterravam no cemitério judeu
do Caju
(e o clarão de teu olhar soterrado
resistindo ainda)
o táxi corria comigo à borda da Lagoa
na direção de Botafogo
as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós"
Ainda bem que não dependem.
Vá tranquilo, vá tranquilo pra lugar nenhum, primo, pois, aqui, o vento ainda sopra como quem não tem pressa.
quarta-feira, 5 de setembro de 2012
Drama
Meu deus! Eles
se reencontraram. Foi da forma mais casual possível: numa loja dessas de
discos, livros e etc. Eles já haviam estado lá muito tempo atrás... juntos. Pedro
tinha em mãos um livro do Freud, uma caixinha daquelas bonitinhas, usadas pra
por presentes e um CD do The Raveonettes. Alex logo pensou: “ele está
apaixonado”.
- Oi!
- E aí,
Pedro?
- Comprando
filme? – Pedro nunca fez, em toda sua vida, uma pergunta com tanta naturalidade.
Era como uma pessoa extremamente educada puxando assunto com um ex-colega do
cursinho de inglês.
É incrível
o comportamento humano, é incrível o fluxo da vida. A mesma pessoa que você
apresenta pros seus amigos como “meu namorado”, alguns dias, meses, anos ou
décadas depois, é um conhecido com quem você se esbarra em algum lugar por aí.
Vocês já trocaram segredos, fluidos, gemidos, presentes, declarações,
promessas. Agora vocês trocam um olhar de formalidade, como quem quer dizer que
tem maturidade e está bem, como se acreditassem que tudo passa.
- Pois é, tá
cheio de drama em promoção... Quer dizer, filmes, no geral... É que... Você
gosta de drama, eu acho. Tem drama. Tudo doze e noventa.
- Nem vejo
drama mais, acredita?
- Acredito
– e sorriu forçado.
Não, Alex
não acreditava. Pedro sem ver drama? Ele tinha todos os filmes do Walter
Salles, como não vê mais drama? Quem ele quer enganar? Ele está se enganando,
se acha que não gosta mais de drama.
- Pois é.
Como que tá lá no jornal? Escrevendo muito? Esses dias, vi que uma matéria sua
foi capa, parabéns!
- Eu saí do
jornal.
- Sério?
- É, aquela
foi minha última matéria pra eles – Alex não conseguia mais disfarçar o
desconforto. “Que conversa idiota”, pensou.
- Ah, sim...
Então, cara, vou pra fila do caixa, pagar isso aqui. Bom te ver!
- Vai lá,
até mais.
Alex foi
pra seção de literatura estrangeira. Estava a caminho do caixa quando encontrou
Pedro, mas não ia ficar na fila com ele, os minutos constrangedores durariam
uma eternidade. Sem contar que, mais alguns segundos, e falaria “espera aí,
depois você termina de comentar sobre o tempo, queria te falar que você sem
barba fica horrível e que essa pulseirinha que você tá usando é ridícula, além
do mais, que voz irritante você tem, e em cinco anos de namoro, eu nunca tinha
percebido como você é chato e forçado, puta que pariu...”, e por aí vai. Pedro,
no caixa, se perguntava se Jorge iria gostar da caixinha que comprara pra ele.
No caminho pra casa, lembrou dos filmes do Walter Salles, decidiu que voltaria
a assistir drama. Será que Jorge assistiria com ele, como Alex fazia?
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