terça-feira, 18 de setembro de 2012

Perder a paz



Ele tomou uma garrafa de vinho deitado no sofá, ouvindo Bethânia. Sentia saudade não sabia do que, de quem. A noite estava tão quente. Será que lá fora estava melhor? Não tinha ideia, fazia tanto tempo que não ultrapassava as fronteiras físicas daquela kitnet suja. Nos pensamentos, não parava lá dentro.

Ele já tinha várias certezas inúteis, elaborou todas pensando sobre coisas inúteis, enquanto, no seu isolamento, se esquecia de como se vive funcionalmente. Seu celular tocou. Ele não se lembrava de que tinha um celular. O toque era um sambinha animado, que conforme foi tocando, fez seu coração acelerar, desesperado. Ele silenciou a ligação, nem pensou em atender seu amigo Tiago (ou seria ex-amigo? Não se viam há tanto tempo!). Ah, antes que eu me esqueça, como ele quase já havia esquecido: seu nome é Lázaro. O que aquele toque havia feito com Lázaro? Simples, o fez lembrar de que ele já sambou, no mundo lá fora, com gente lá fora. Lázaro já sambou. Lázaro foi feliz.

Ele foi até a sacada, olhou as pessoas andando lá embaixo, os carros. Risadas, conversas, buzinas. Ficou um pouco tonto, mas foi seduzido por aquele fuzuê. Colocou uma calça jeans, dez reais no bolso, seu all star vermelho e disse pra si mesmo que iria só comprar um cigarro no bar da esquina. Dentro do elevador, olhava os números mudarem com uma atenção quase mórbida. Conforme os números decresciam, a ansiedade aumentava. 5. E se encontrasse alguém conhecido? 4. Fazia tanto tempo que não tocava uma mulher. Teriam muitas mulheres no bar? 3. Preocupou-se por estar mal vestido, todos o veriam como um trapo. 2. Por isso é difícil sair, olha que merda. Você sai pra comprar um cigarro e no mínimo dez pessoas vão te fuzilar com os olhos, te reprovar, te rejeitar, na cabeça delas, como se você fosse uma figura indigna de empatia. 1. Não devia ter saído de casa, pensou. Foi a pior decisão possível. Térreo.

“Boa noite, Lázaro! Resolveu sair da toca?”,  gritou o porteiro, de dentro da guarita. “Boa noite”, respondeu baixo, sem nem olhar. Deu passos afobados até o bar, mas seu rosto refletia alguém que parecia não ter vida. Parecia. Lázaro tinha uma vida, a qual começou a questionar no momento em que ouviu seu celular tocar. Entrou no bar. Chegou ao caixa e ficou parado, olhando pro mostruário de cigarros. “Posso ajudar?”. Era uma mulher bonita, da voz gentil, devia ter uns trinta anos. “Um Marlboro, por favor”. Lázaro parecia ter acabado de acordar, apesar dos olhos atentos. Tinha um tom melancólico e alheio, qualquer um perceberia.

- Eu não tenho fogo, esqueci o isqueiro em casa. Tem aqui? – perguntou pra mulher do caixa.
- Claro. Aqui!
- Vou lá fora acender.
- Pode fumar aqui. Vai beber alguma coisa?
- Não, vim só dar uma olhada. – soltou sem ver, talvez sem imaginar como isso soaria pra uma outra pessoa. 
- Dar uma olhada no quê? – perguntou rindo a mulher.
- Ah, nada... O tempo, pessoas... – acendeu o cigarro.
- Ah, sim. Como é seu nome?
- Lázaro.
- Eu sou a Carmen, Lázaro. Se quiser uma cervejinha ou outra coisa, é só pedir.

Lázaro só sorriu. Ficou ouvindo as pessoas, cada mesa tinha uma conversa diferente, e todo mundo parecia falar ao mesmo tempo. “Onde eles arrumam tanto o que falar?”, falou baixo. Estava acostumado a conversar sozinho em casa, mas do outro lado do balcão estava Carmen, que ouviu.

- Como?
- O que?
- Você falou alguma coisa.
- “Onde eles arrumam tanto o que falar?”. Tava pensando alto, desculpa.
- Eles?
- As pessoas. Enfim... – acendeu outro cigarro.
- Todo mundo tem muito o que contar.
- Mas acaba não contando. Quando outra pessoa não está ouvindo, você tá só verbalizando, não tá contando nada. E ninguém ouve. Tá todo mundo falando ao mesmo tempo.
- A história da gente sempre é mais interessante pra gente. Às vezes, só pra gente. Eu li num livro, uma vez, que enquanto o outro fala, a gente tá é pensando no que vai falar. Já reparou nisso?
- Não. Não ando conversando muito.
- Cansou de verbalizar pra ninguém ouvir?
- Eu só... Eu só não vejo sentido. As pessoas fazem tanta coisa. Tanta coisa que, se você parar pra pensar, não faz sentido. A gente atravessa o dia fazendo coisas, pra chegar em casa e nada fazer sentido. Nada preenche, vai ficando tudo vago, tudo... Tudo em branco.
- Mas por que as coisas precisam de um sentido?
- Se elas não fazem sentido, elas geram angústia. E fazer sentido ou não, só é uma questão pra quem está infeliz. Quem está feliz, não se preocupa com o sentido da coisa, a coisa basta.
- E o que faz alguém ser feliz?
- Já me perguntei isso todos os dias, por muito tempo. Agora eu só aceito:  algumas pessoas são felizes, outras não.
- Você é feliz, Lázaro?
Lázaro sabia que não, estava cansado de saber que não. Mas quando Carmen perguntou, doeu. Doeu por que, quando outra pessoa pergunta, a resposta importa. Quando você responde para OUTRA pessoa que é infeliz, você está CONTANDO que é infeliz, não apenas tomando consciência disso.  Respirou fundo, com os olhos fixamente direcionados para a o cigarro em suas mãos.
- Acho que ninguém que sai de casa pra fumar um cigarro e ouvir conversas alheias é feliz.
- Você não tá ouvindo conversas alheias mais.  Você tá falando comigo. – Carmen colocou a mão no ombro de Lázaro, que pela primeira vez olhou para ela de verdade. Com um sorriso de mulher que sabe da vida, ela continuou falando. – Olha, rapaz, a gente realmente vive num mundo que parece estar correndo enlouquecidamente pra lugar nenhum, mas a gente não precisa correr, a gente não precisa chegar em lugar nenhum. A gente precisa de paz, de dar voltas, se perturbar, e então dar mais voltas pra ficar em paz de novo. A felicidade é superestimada, só por isso doi não tê-la. A propaganda é falsa, acredite. Não é isso tudo ser feliz. Mas ter paz é tudo. E perder a paz também é tudo. Você vai usar o sentido das coisas pra fazer o que? Você tem que SE usar. O sentido das coisas é delas... Seu, é só você. O que cabe a você, é você. Pode ter um vácuo de sentido em tudo que a gente faz, mas se a gente faz alguma coisa, a gente se livra do vácuo de nós mesmos.

A cabeça de Lázaro estava a ponto de explodir, pensava em tanta coisa, sentia tanta coisa. O borbulho de pensamentos foi exterminado por um abraço. Que abraço! Nos braços de Carmen, Lázaro chorou. Não se precisa de sentido, quando se tem um abraço. Lázaro foi liberto: Carmen exorcizou sua alma de um demônio que, de alguma forma, ela parecia conhecer bem. Que demônio é esse, ninguém sabe ao certo, e agora, ninguém quer saber. Pelo menos, não Lázaro. 

Chegou um cliente ao caixa e Carmen foi atendê-lo. Lázaro colocou o cigarro no bolso e caminhou até a saída do bar. De lá, olhou para Carmen e os dois trocaram um sorriso, era um agradecimento mútuo. “Obrigado por ter me ouvido”, era o que a troca de olhares dizia. 

Deixando o bar e as pessoas que verbalizavam simultaneamente sem parar para trás, Lázaro caminhou de volta para casa carregando a sensação do abraço de Carmen. Nessa noite, criou outra certeza, talvez não tão inútil: não é uma injustiça a felicidade alheia, nem a sua infelicidade; não há motivo para se sentir vazio, quando não existe a necessidade de se preencher de sentidos. De agora em diante, Lázaro sabe que só precisa perder a paz mais vezes.

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