quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O viúvo negro

O som do piano velho, o vinho seco trincando nossas línguas, seu sorriso maquiavélico quando minha mão desce um pouco mais. Foi tudo sempre tão sombrio entre nós. Lindamente sombrio. E é assim que acabará: sombriamente.

Lembro-me de quando ainda tínhamos sexo. Você com uma corrente no pescoço, presa à cama, se arranhando com as unhas pintadas de preto e as pupilas dilatas, me chamando pra lhe abater. Como você era boa no que fazia. A amante atrevida, a mulher fiel.

Depois daquele acidente, eu perdi você. Você se perdeu. Agora o que eu tenho, o que você tem, é sua figura semimorta nessa cama. Ah, Felícia, você está tão pateticamente entregue! A chama inapagável dos seus olhos não é nem faísca agora, suas unhas estão cianóticas e seus lábios descascando, perdendo a pele vermelha de outrora.

Minha cara, eu te daria minha vida. Eu mataria e faria magia se fosse algo útil pra trazer de volta os movimentos de seu corpo, a libido que antes era um tigre preso, pronto para atacar e chegar até as entranhas de sua vítima. Ah, quando você gemia... eu podia sentir seu sangue borbulhar, seu coração espancar tudo em volta com a força de sua batida. Agora seu coração é um grão de areia sendo balançado pela brisa mórbida dessa casa.

É por isso, meu amor, que em minhas mãos tremulas e inseguras, está este punhal. Ele entrará em seu peito, sobre seu coração, e sua ponta chegará até o lençol branco, que logo será inundado pelo seu sangue de vinho seco. Eu te libertarei do “não se ter” que está sendo tudo isso. Muitos acharão que eu sou um assassino frio, mas eu sou apenas um homem que está louco pra acabar com a dor de quem ele mais ama.

É agora, Felícia. Eu te pediria um ultimo beijo, mas não quero fazer disso um fim trágico shakesperiano. É um novo começo. Nós nos encontraremos em um lugar cheio de correntes para satisfazerem nossos fetiches. Eu te venero! Até lá.

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